Os outros dias de Rafael Gallo

Rafael Gallo, autor vencedor do Prêmio SESC de Literatura de 2011 na categoria Contos, faz parte da nova geração de escritores que não cultiva mais a reclusão como parte da sua carreira. “É um fenômeno visível como a figura do escritor tornou-se mais proeminente, transformando-o em uma espécie de “showman” também. Hoje o autor participa de eventos, bate-papos, podcasts, programas de TV, além de estar nas redes sociais fazendo mil e umas”, diz ele. Rafael tem um blog, o Labirinto Invisível, onde, além de matérias literárias, costuma entrevistar seus pares – eu mesma estive na seção Com a Palavra durante o blog tour da Anete. Leia, abaixo, a entrevista que Rafael cedeu ao blog da Ronize Aline.

A jornada de Rafael Gallo

Seu primeiro livro, Réveillon e outros dias, foi o vencedor do Prêmio SESC de Literatura de 2011 na categoria Contos. Há uma unidade, um fio condutor na obra ou os contos são completamente independentes? Qual é o grande desafio de escrever um livro de contos em relação a escrever um romance?

Rafael Gallo: Do ponto de vista das narrativas e dos personagens, os contos são independentes entre si, ou seja, as histórias não se encontram ou se cruzam. Mas acho que há uma espécie de unidade temática: os contos são muito centrados nas relações humanas e na tentativa de desmitifica-las, investiga-las em suas contingências. Sei que isso pode parecer um pouco vago ou abrangente demais, mas é a forma como eu pensei na criação e organização do material.

Eu acho que essa questão do desafio do conto e do romance tem mais a ver com outras duas coisas: a principal delas é a história que se quer contar, o que ela tem pra oferecer e o que ela demanda em sua narrativa e dramaticidade. Tem histórias que funcionam melhor em um conto, outras em um romance; parece óbvio dizer isso, mas por que então ainda se faz tanta diferença de valorização entre um e outro, se a questão é o que melhor funciona em cada caso? “A noite de barriga pra cima”, do Cortázar, por exemplo (como muitos outros contos brilhantes dele), teria ido por água abaixo se fosse transformado em um romance. Há histórias que precisam do espaço, da duração de um romance para se realizarem, mas nem sempre é assim; há algumas que precisam dessa relativa brevidade do conto para um melhor efeito (isso pra nem entrar no mérito da questão de que há contos bastante extensos e romances bem curtos). O segundo aspecto tem mais a ver com características pessoais do autor, eu acho, como a cabeça de cada um funciona. Eu tenho mais facilidade em escrever contos porque gosto de criar histórias diversas e me sinto mais confortável com aquele espaço mais concentrado; mas já vi vários romancistas dizendo que o conto é mais difícil justamente por conta dessa redução de recursos. Acho que isso depende de cada autor, não há mesmo um valor absoluto para o que é mais difícil ou demonstra mais a habilidade de escrita. Quem escreve de verdade sabe bem disso

rafael gallo

O conto sempre foi, injustamente, considerado um gênero menor em relação ao romance. Em 2013, pela primeira vez o Prêmio Nobel de Literatura foi dado a uma contista, Alice Munro. Você acredita que essa premiação possa quebrar certos preconceitos existentes contra o gênero? Pela sua experiência como vencedor de um concurso literário, acredita que prêmios são capazes de provocar alguma mudança no cenário editorial?

Rafael Gallo: Eu acho que sim. Não que eu pense que essa desvalorização do conto vá desaparecer da noite pro dia, mas como a maioria das pessoas – inclusive as “entendidas no assunto” – forma sua opinião baseando-se em outras opiniões prévias, é bem capaz que surja ao menos um constrangimento ao se querer diminuir o conto de alguma forma. Talvez agora vá parecer mais inteligente dizer que o conto tem, sim, valor (já consigo imaginar todos repetindo, como um cacoete: “Você não viu a Alice Munro?!”).

Por essas e outras, acredito que os prêmios podem causar algumas mudanças, sim (não que isso aconteça sempre). O Nobel da Alice Munro foi muito importante, inclusive pelo poder de influência mundial. O último Prêmio SP, que consagrou dois autores de editoras pequenas – Paula Fábrio, lançada pela Patuá, e Jacques Fux, pela Scriptum – também. Acho que esse tipo de coisa serve, ao menos, pra dar uma sacudida no eixo, nas “verdades absolutas” sobre as quais as editoras frequentemente se apoiam. Talvez passem a pensar duas vezes antes de afirmar, como costumam fazer, coisas do tipo “autores novos, principalmente de contos ou poesia, não têm chance no mercado”. Abalar essas certezas do meio editorial já é um passo importante.

Você é também compositor, produtor musical e sound designer, com trabalhos na TV e cinema, inclusive premiados, além de professor universitário na área. O que música tem a ver com literatura? Como se dá, no seu processo criativo, a relação entre essas duas artes?

Rafael Gallo: Eu até passei um tempo tentando evitar um pouco essa associação. Não queria ser visto como o músico-que-escreve. Me parecia que esse tipo de figura poderia ser tido como uma espécie de “paraquedista”, considerando, por exemplo, que até hoje torcem o nariz pros livros do Chico Buarque – ainda que eles sejam melhores do que o trabalho de muitos escritores incensados por aí. Mas hoje em dia tenho uma visão diferente: acho que a música, e minha história com ela, têm se revelado cada vez mais em meus escritos. São duas formas de criação bem diferentes, mas tenho trazido para minha escrita algumas das características da composição musical, principalmente no que se refere ao uso de alguns “motivos” – no caso literário: expressões, palavras ou temas – que se repetem dentro do texto a fim de um efeito específico, de criar-se uma carga de sentido e dramaticidade. Acho que a música não entra muito em meu texto pelas vias mais esperadas – no ritmo das frases, ou na “musicalidade” das palavras – mas sim em minha maneira de pensar a estruturação geral e as costuras internas.

Você já tinha uma carreira na área da música quando venceu o Prêmio SESC. De que forma a literatura surgiu para você como uma carreira?

Rafael Gallo: A literatura surgiu como carreira de fato com o Prêmio Sesc. Antes dele eu não tinha um pensamento muito certo de como seria minha relação com a escrita: se seria um hobby apenas, se eu criaria um blog, se tentaria escrever roteiros pra cinema, etc. Creio que esse foi o meu maior ganho com o prêmio: ele me deu um caminho novo, que me realiza plenamente. A escrita, hoje, é mais do que uma carreira pra mim; é parte fundamental da minha identidade. E isso eu devo ao prêmio.

Quais são as suas referências literárias? São basicamente contistas?

Rafael Gallo: Não sei, não faço muito essa divisão entre contistas e romancistas. Embora façamos uso dessas expressões, a maioria dos prosadores passou pelos dois gêneros. Minhas referências são em grande parte aqueles autores óbvios (e que na minha opinião realmente merecem ser uma referência óbvia): Clarice Lispector, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Júlio Cortázar, Mário de Andrade, etc. Também fui muito influenciado por poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Além dessas referências diretamente literárias, artistas de outras áreas me influenciaram muito: como cresci envolvido com a música, letristas como o já citado Chico Buarque, Noel Rosa, Aldir Blanc e outros sempre fizeram minha cabeça. E cineastas também, com quem aprendo muito sobre a composição de uma história; sou influenciado grandemente por Michael Haneke e Stanley Kubrick, por exemplo.

Conte um pouco sobre o seu processo criativo. Você é um escritor metódico, com hora para escrever, costuma estruturar e esboçar seus textos, ou prefere um modelo mais “caótico”, mais fluido?

Rafael Gallo: Não, não tenho hora pra escrever. Nem consigo me organizar assim, com minha rotina. Também não gosto muito de estruturar as coisas previamente, sou péssimo nisso. Sinto que preciso “meter a mão na massa” mesmo pra coisa andar. O que acontece é que penso muito sobre os personagens, como eles se sentem e se comportam, e quais situações eu poderia criar para dar mais amplitude ao efeito que quero passar. Penso nessas coisas quase o tempo inteiro, enquanto estou acordado. Na hora de escrever quase nunca sou muito fluido; reescrevo bastante, demais da conta. Parece muito o trabalho de escultura em pedra, sabe? Pra cada detalhe é um monte de marteladas. Depois uma polida no todo, e mais outra e mais outra.

réveillon e outros dias, rafael gallo

Você acompanha os demais escritores brasileiros da nova geração? Como você vê a produção recente e a relação dos leitores com os novos autores?

Rafael Gallo: Eu tenho acompanhado, sim, embora não com o ritmo que gostaria (acho que nunca alcançamos isso). Mas tem alguns caras que leio sempre: gosto muito do trabalho do João Anzanello Carrascoza, do Flávio Izhaki e de outros. Entre os próprios vencedores do Prêmio Sesc há muita gente boa, dos quais destaco principalmente o trabalho do Maurício de Almeida, que na minha opinião é um dos maiores escritores de nossa geração.

Eu acho que a relação com o leitor hoje é bem diferente. É um fenômeno visível como a figura do escritor tornou-se mais proeminente, transformando-o em uma espécie de “showman” também. Hoje o autor participa de eventos, bate-papos, podcasts, programas de TV, além de estar nas redes sociais fazendo mil e umas. Acho que isso tem dois lados: é legal porque permite a interação entre escritores e leitores, bem como a divulgação do trabalho do autor. Só acho ruim a inversão de valores que parece embutida nesse esquema: de repente, o escritor é avaliado e difundido não pelo o que escreve, mas pelo desempenho que tem nessas atividades que deveriam ser paralelas à escrita e não sobrepostas a ela. Não é à toa que há muitos escritores bons que não são publicados e divulgados como mereciam, enquanto alguns com tão pouco talento recebem todos os holofotes. Bem, alguns nem são escritores de verdade e saem pelas maiores editoras do país, são resenhados pelos grandes jornais, etc. etc. Isso eu acho um efeito colateral ruim.

Quais são os livros que estão atualmente na sua mesa de cabeceira?

Rafael Gallo: Eu juro: minha cabeceira tem uma pilha de livros que nunca acaba. E eu continuo acrescentado outros volumes. Isso não é figura de expressão, estão lá, em capa e folha (que seria o correspondente do “em carne e osso” para livros): “Poesia completa”, do Drummond; “Toda poesia”, do Leminski; “Resposta ao tempo”, com as letras do Aldir Blanc; “Esse inferno vai acabar”, do Humberto Werneck; “Millôr definitivo”, do Millôr; “Conversas com Kubrick”, de Michael Ciment, e “Cuentos completos”, do Cortázar. Minha escolha entre esses depende do humor no dia.

Você mantém um blog sobre literatura, o Labirinto Invisível, no qual fala não apenas do seu trabalho mas também do trabalho de outros escritores. Na sua opinião, as mídias sociais têm sido bem aproveitadas pelos autores ou ainda é pouco explorada?

Rafael Gallo: Acho que depende do caso. Muitos têm lá seu Facebook, seu twitter e seu blog. Acho que isso mantém ao menos o básico de interação e divulgação. É mais ou menos o que faço. Tenho um site também (www.rafaelgallo.com.br). Não sei, eu acho que me beneficio de divulgar meu trabalho, mas voltando ao que tinha dito antes, acho que é preciso tomar cuidado pra não se tornar um “divulgador de si mesmo que também escreve”, ao invés de um escritor que se divulga. Não inverter a balança. Tenho a impressão que alguns escritores montam e se dedicam a uma estrutura tão grande de auto-promoção que o tiro pode sair pela culatra. Pode haver um desgaste de sua imagem como escritor se você tenta chamar a atenção demais para si mesmo, por outras vias que não a literatura. Além disso, é claro, pode perder-se um tempo precioso de pesquisa e dedicação à escrita no investimento à propaganda. Estava comentando sobre isso com uns colegas esses dias; às vezes fazer esse tipo de coisa pode tornar-se desmedido se comparado com o que a gente quer de verdade, que é escrever. É como montar um restaurante só porque tem vontade de comer batata frita.

E o que vem depois de Réveillon e outros dias?

Rafael Gallo: Estou escrevendo um romance agora. Eis mais uma demonstração de que não acredito muito nessas divisões de contistas e romancistas. Pretendo conclui-lo esse primeiro semestre de 2014, vamos ver. Virei romancista, então? Não, depois desse segundo livro pretendo lançar uma nova coletânea com os contos que também ando escrevendo. Se a Clarice já não deixava essa coisa de gênero pega-la, por que não aprendermos essa lição?

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Sobre o Autor

Ronize Aline
Ronize Aline

Ronize Aline é escritora e consultora literária. Já foi crítica literária do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, e trabalhou como preparadora de originais para várias editoras nacionais. Atualmente orienta escritores a desenvolverem suas habilidades criativas e criarem histórias com potencial de publicação.

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