[Resenha] Perder-se nas inúmeras camadas da Paisagem de Porcelana

paisagem de porcelana

Desparecer. Deixar de ser percebida e, na falta do reconhecimento pelo outro, não reconhecer-se mais em si mesma. “Escavar a névoa. Andar nevoamente por ruas sinistras e tentar enxergar o chão, com olhos de coruja, quando a luz amarela dificulta o reconhecimento do que é pedra e do que é buraco”, elabora Helena, protagonista de Paisagem de Porcelana, segundo romance da escritora e jornalista Claudia Nina que acabou de ser lançado pela editora Rocco.

Helena parte para o exterior para cursar um mestrado e vai, aos poucos, perdendo-se de si mesma nas inúmeras camadas que a terra estrangeira lhe impõe. Enquanto ao seu redor a inóspita Holanda e seus habitantes mantêm-se alheios ao seu desmoronamento interno, a personagem faz uma tentativa de mimetizar-se, confundir-se com ambiente para, quem sabe, sentir-se uma igual. Quanto mais tenta, mais se destaca em sua estranheza. “Desligados os alertas, andei no frio e me queimei. Demorei a perceber que esfriava mais dentro, no meu pequeno e fantástico mundo abilolado, do que fora, naquele cinzento de dar dó, mas onde todo o restante da humanidade seguia vivendo, feliz.”

A narrativa pungente em primeira pessoa vai tentando reconstituir as camadas da memória e mudar a configuração do passado. Mas o que é memória e o que é mimetismo nesse “vestir-me em camadas, como as cebolas”? O livro é repleto de imagens, metáforas e elaborações que vão, mais do que contando, dando pistas de uma história, enrodilhando o leitor em ‘supostas’ amenidades para que, antes que perceba, já esteja mergulhado nas camadas mais profundas. “A memória me salva porque não permite que eu chegue até o osso: por isso invento coisas e finjo que não consigo me lembrar de tudo.”

Cada um, em terras estranhas, tenta sobreviver a seu modo: Yasuko, a japonesa meiga e silenciosa que Helena conhece no alojamento, trata de amassar o arroz para fazer os bolinhos e enxergar a si mesma em algum ponto daquela realidade; a própria Helena busca aprender, sem conseguir, a acumular gorduras que a livrem do frio congelante e dos tombos que a cidade lhe oferece – sejam os físicos, da bicicleta, ou os metafísicos, da alma. No fracasso em tornar-se visível para reconhecer-se nos demais, muda sua estratégia de sobrevivência e passa a almejar a invisibilidade absoluta – a fuga dos outros e de si mesma. “Apenas passei por lá um tempo breve – o mesmo tempo em que a cidade passou por mim, mas não me reconheceu.”

Talvez a estratégia tivesse dado certo não fosse a presença de um avassalador javali de olhos azuis logo após a próxima curva. “Ernest tinha a pele tostada, sobrancelhas marcantes, que diziam muita coisa ao mesmo tempo – cada uma acenava uma frase que a outra contradizia simultaneamente.” Ernest é o próprio desmoronar de suas camadas, uma a uma, que a tanto custo ainda tenta compor. É o que revela a solidão de si mesma, o que a empurra para o salto mortal sem sequer oferecer-lhe o conforto ilusório da companhia. Ernest é o fim e o começo – seja lá o que ambos representem.

Claudia Nina, que já havia desvelado sua escrita vicejante no primeiro romance Esquecer-te de mim – que resenhei para o jornal O Globo há dois anos – mostra um refinamento criativo e linguístico que não só nos traz um imenso deslumbramento ao longo da leitura como engrandece o próprio ofício do fazer literário. Com maestria, a autora constrói um sinuoso labirinto no qual é um prazer perder-se nas inúmeras camadas dessa paisagem de porcelana.

Paisagem de Porcelana
Claudia Nina
Editora Rocco, 2014
160 páginas

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Sobre o Autor

Ronize Aline
Ronize Aline

Ronize Aline é escritora e consultora literária. Já foi crítica literária do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, e trabalhou como preparadora de originais para várias editoras nacionais. Atualmente orienta escritores a desenvolverem suas habilidades criativas e criarem histórias com potencial de publicação.

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